Reportagem Especial | Artigo Nº65: apertem os cintos (de segurança) – Parte I
Por que, mesmo depois de tantos anos, o cinto de segurança ainda continua a ser ignorado por parte dos motoristas e passageiros?
Capa: Conexão Automotiva
Você já se perguntou quem criou algumas das coisas que são utilizadas em nossa rotina? Quem inventou a vital energia elétrica ou quem inventou a internet, que possibilita que você leia esta reportagem, por exemplo? Pois bem, nem sempre todos possuem nomes na ponta da língua, mas Benjamin Franklin é considerado o pai da energia elétrica; já a internet, como a conhecemos hoje, foi desenvolvida por Tim Berners-Lee, no não tão distante ano de 1989. Mas e as demais criações, por ora, mais simples, porém também tão essenciais, como o cinto de segurança? Você sabe quem a desenvolveu?
De certa forma abnegado, o cinto de segurança foi patenteado pelo francês Gustave Désiré Liebau, no início do século passado, mais precisamente no ano de 1903, na França. Mas há relatos de que ele surgiu ainda antes, por meio de um engenheiro inglês chamado George Cayley, para uso em seu planador, já com a função de retenção, em meados do século XIX. Em razão disso, engana-se quem pensa que o item apareceu, primeiramente, na indústria automobilística. Apesar de ser usado como protótipo por Cayley e patenteado por Liebau, o item de segurança ganhou primeira ascensão em um momento bem crítico da história: a Segunda Guerra Mundial.
Apesar de não saber ao certo quando o cinto de segurança foi criado, por conta da falta de informação concreta, é incorreto afirmar que ele foi criado por um ou por outro. Fato é que o seu uso se tornou muito importante no século passado, quando o equipamento foi criado para facilitar a vida dos pilotos de aviões, impedindo que estes fossem arremessados para fora das cabines durante a aterrissagem. E, assim como acontece com muitas invenções, ela pode ser reaproveitada para uma outra segunda serventia: diminuir o risco de lesões graves em caso de acidente.
Foto: Conexão Automotiva
Criado com o propósito de atender finalidades da aviação e posteriormente reaproveitado, o cinto de segurança se provou como um ótimo equipamento de retenção dos seus usuários. Com o aumento da frota de automóveis em todo o século passado, logo se contabilizava um aumento de acidentes em que os ocupantes eram, muitas vezes, arremessados para fora do veículo ou se chocavam contra peças internas, como volante e painel. Nos carros, o cinto de segurança começou a ser usado no final da década de 1940, com o cinto de dois pontos, que passa apenas pela região abdominal. De acordo com a história automotiva, o primeiro automóvel a usar o equipamento foi o Ambassador, da extinta Nash Motors, em 1949. A marca norte-americana instalou o equipamento em cerca de 40.000 veículos, na época, mas não era item de série.
Apesar de benefícios aos ocupantes, surgiram os primeiros movimentos contra o cinto de segurança, que aparecem praticamente com o lançamento do Nash Ambassador. De um lado, pesquisas científicas. De outro, uma pressão popular de quem não queria usar o cinto. Entre o final dos anos 1940 e o início da década de 1950, acalorados debates nos EUA começaram sobre sua eficácia e, a partir deles, foram estimulados os primeiros (e grandes) mitos de se usar o cinto: “e se ele me causar ferimentos?”, “E se ele me impedir de fugir em caso de acidentes?” ou “E se o carro for submerso/pegar fogo, como soltá-lo?”, entre outras perguntas que aterrorizavam o imaginário social. Deste modo, se uma parte da população nutria essa percepção negativa, a outra mantinha uma postura cética sobre sua eficácia. E é justamente nessa época que também surge o clássico: ‘usa quem quer’.
Propaganda do Nash Ambassador (esq) e da Ford em 1955 (dir), quando revelou o cinto como opcional / Fotos: Divulgação
A opinião pública em relação ao uso do cinto de segurança poderia chegar a medidas mais extremas: por medo, houve quem decidisse cortar os cintos dos seus veículos. Outra prática corriqueira de alguns consistia em ir até uma concessionária e, sabendo que determinada unidade contava com o equipamento, o mesmo ficava no showroom da loja por mais tempo que os demais veículos sem o cinto instalado. A Ford vendia o cinto de segurança como um opcional para alguns modelos, mas poucos quiseram aderir: cerca de 2%. Essa prática da Ford, de oferecê-lo como opcional, aconteceu nos EUA, a partir de 1955. No mesmo ano, o estadunidense Glenn W. Sheren entrou com pedido de patente em 31 de março de 1955 com o cinto de segurança, que é considerado o antecessor do cinto de três pontos como conhecemos hoje.
Registros de patente feitos nos Estados Unidos, de Glenn W. Sheren, em 1955 | Fotos: Reprodução
As imagens de patente mostram que ele é uma combinação de um cinto de dois pontos com uma faixa que atravessa transversalmente o peito, mas que não era fixado na coluna, como os cintos que conhecemos hoje. A patente mostra que a parte transversal do cinto era fixada atrás do banco, no assoalho. Ainda era necessário afivelar o quadril e a faixa transversal. Essa patente era uma atualização do registro feito por Sheren, em 1952. Já em 1958, a Saab apresentou o GT 750, no Salão do Automóvel de Nova Iorque, pioneiro por ser o primeiro carro com o cinto como equipamento de série, com o cinto de dois pontos. E é aí que surge Nils Bohlin, contratado pela Volvo em 1958. Anteriormente projetista de sistemas de ejeção de pilotos para a indústria aeronáutica, Bohlin, então primeiro engenheiro de segurança da Volvo, criou o cinto de segurança de três pontos que conhecemos hoje em 1959, que passa pelo abdômen e pelo tórax, com o cinto do tórax fixado na parte interna da coluna B das portas. O item foi usado pela primeira vez no Volvo PV544, lançado no dia 13 de agosto de 1959.
Registro da patente do cinto de Nils Bohlin nos EUA | Foto: Reprodução
Bohlin aparece com a sua criação (esq) e uma propaganda da Volvo com uma mulher usando o cinto (dir) | Fotos: Divulgação
O Saab GT 750, primeiro com cinto de série (esq), e o Volvo PV544, primeiro com cinto de três pontos como conhecemos (dir) | Fotos: Divulgação
No Brasil, o cinto de segurança só se tornou obrigatório para instalação nos automóveis novos na década seguinte, mas seu uso ainda não era obrigatório. Isso aconteceria anos depois. De lá para cá, muita coisa mudou, para melhor. Mas, por um outro lado, criar uma cultura de segurança nos condutores para usar o cinto de segurança é um debate atual até hoje. A partir de agora, você confere a nossa Reportagem Especial | Artigo Nº65: apertem os cintos (de segurança) - Parte I. Nesta edição, falaremos sobre os primeiros dois tópicos.
SUMÁRIO
- O cinto de segurança no Brasil
- Brasil, apertem os cintos. Dados e perfis, aí vamos nós
- Níveis de segurança do cinto de os riscos de não utilizar
- No banco traseiro, o uso é tão necessário como na frente
- Os fatores psicológicos
- Legislação e formação de condutores
- Manutenção do cinto, um ponto a ser lembrado
- A tecnologia em favor da segurança
- Sim ao cinto, pela sua segurança
O cinto de segurança no Brasil
No Brasil, o cinto de segurança possui uma história que podemos qualificar, de certa forma, como inovadora. Aqui, ele se tornou obrigatório em 1968, sendo uma exigência em todos os veículos zero-quilômetro produzidos a partir de 16 de janeiro de 1968, de acordo com o decreto Nº 62.127, sendo aprovado pelo recém-criado Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Os trâmites para fazer com que o item fosse um equipamento obrigatório começou no dia 21 de setembro de 1966, quando o Contran foi instituído. Ele trouxe a regulamentação das vias terrestres, onde ruas, avenidas, estradas, caminhos, passagens, praias e logradouros de domínio público passaram a ter que respeitar as regras do Conselho.
No país, a lei que obrigava que todos os veículos vendidos no país tivessem cinto de segurança para os ocupantes, se tornou efetiva poucos anos depois. Comparado com países de primeiro mundo (como no caso do Reino Unido e dos Estados Unidos, que exigiram que os carros tivessem o equipamento em 1966 e 1968, respectivamente), ou seja, o Brasil pode ser considerado um dos pioneiros na exigência do item. Antes, os carros podiam contar ou não com o cinto de segurança, uma vez que o equipamento nasceu ao fim da década de 1940. Em 28 de fevereiro de 1967, um decreto-lei alterou um pouco o decreto inicial, com a exclusão de alguns artigos. Foram necessários mais alguns meses até que a obrigatoriedade em veículos 0km começasse a valer, mais precisamente em 16 de janeiro de 1968, quando o então Presidente da República, do período militar, Artur da Costa e Silva, decretou o regulamento do Contran.
Foto: Conexão Automotiva
Em 11 de maio de 1972, por meio do processo Contran nº 53/72, para melhorar a segurança dos veículos produzidos no Brasil, surgiu a Resolução Nº 461/72. Essa resolução ouvia sugestões da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e obrigava que automóveis produzidos no país tivessem que satisfazer alguns requisitos, como a ‘Localização e Identificação dos Controles’. Nesse caso, o motorista, usando o cinto de segurança, deveria ter total alcance operacional de uma série de comandos usados durante a condução, como direção, buzina, transmissão, ignição, faróis, indicador de mudança de direção, limpador e lavador do para-brisa, afogador e para-sol lado do motorista.
A obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, no entanto, aconteceria depois. E ela passou por idas e vindas que por muitas vezes confundiram a população. Ele se tornou obrigatório em 29 de julho de 1983, com a Resolução Nº 615, que entrava em vigor em 1º de janeiro de 1984. Inicialmente, sua obrigatoriedade se daria apenas em rodovias. Em 1º de abril de 1984, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) iniciava então a fiscalização do uso do item em estradas. Em 1º de janeiro de 1985, um ano depois da obrigatoriedade em estradas, ele passou a ser obrigatório também no perímetro urbano.
Mas a lei sobre seu uso obrigatório parecia ter alguns oponentes. Em um documento que consta no Portal da Câmara dos Deputados, um Projeto de Lei (PL) do então deputado Juarez Bernardes, tramitou em 1984, pouco tempo depois do equipamento ser exigido nas estradas. O PL 3126/84 queria tornar facultativo o uso do cinto de segurança em veículos. Junto com a proposta, o deputado acrescentou que a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança “[...] trata-se de medida bastante controvertida e que tem provocado inúmeras reações. Autoridades de renome têm vindo a público esclarecer que, em determinadas situações, o uso do cinto de segurança é altamente nocivo à integridade física do motorista ou dos passageiros”, dizia ele, na época.
O PL 3126/84 que pretendia tornar o uso do cinto de segurança facultativo, debatido em 1984, arquivado em 23 de outubro de 1984 | Foto: Câmara dos Deputados | Organização: Conexão Automotiva
Apesar da tentativa, este Projeto de Lei foi arquivado em 23 de outubro de 1984. Você poderia me dizer: “vida longa ao uso do cinto de segurança!” e eu responderia com um “calma lá”. Pouco menos de um ano depois, já em 1985, a obrigatoriedade seria revogada tanto nas estradas como nas cidades, como destaca Maria Helena Hoffmann, no artigo “Aspectos comportamentais dos condutores e o uso do cinto de segurança”, publicado no livro Comportamento humano no trânsito. A autora ainda relata que os diálogos sobre a obrigatoriedade do cinto de segurança só seriam retomados três anos depois, em 1988. A Resolução 720/88 fazia o Contran passar a obrigar novamente condutores e passageiros a usarem o cinto de segurança em rodovias federais.
Sendo uma prioridade do Programa Nacional de Segurança de Trânsito (Pronast), apresentado pelo então Presidente da República, José Sarney, foi lançado, em 21 de julho de 1988, e aprovado, em 4 de outubro do mesmo ano. Após a aprovação, ela passou a vigorar no dia 1º de janeiro de 1989, valendo para as rodovias. Foi a partir daí que a PRF começou a fazer não só fiscalização, mas campanhas educativas para a conscientização dos ocupantes de veículos. Assim como aconteceu antes, novamente houve reclamações. De acordo com um documento do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, de Brasília (DF), muitos cidadãos inconformados com a volta da obrigatoriedade levaram a questão ao Judiciário, argumentando que a exigência administrativa violava o princípio da legalidade.
Este princípio, traduzindo do juridiquês, significa que ninguém é obrigado a agir, fazer ou não fazer nada sem que seja em virtude da lei. Isso porque a obrigatoriedade de uma resolução não possui força de lei. No entanto, o Presidente da Corte, o juiz Vieira da Silva, sabendo da parcial razão dos protestantes com base no princípio da legalidade, optou por manter a Resolução 720/88. Uma vez que o desrespeito à norma poderia gerar prejuízos para a “ordem, a segurança e à economia públicas”, de acordo com o TRF1. Na visão do juiz, ao manter os efeitos da resolução, optou-se pelo direito à vida e à segurança, constitucionalmente assegurados em lei.
Foto: Conexão Automotiva
Estes direitos foram considerados mais importantes que o direito “sobre a vida”, esclarecendo uma ordem hierárquica mais relevante. “Logo, entre os princípios da ‘indisponibilidade da vida e da saúde’ e o ‘da liberdade de agir’, o ordenamento jurídico pátrio optou pelo primeiro, na medida em que não admitiu a legitimidade", acrescentou o TRF1 ao relembrar sobre a sentença. Para a obrigatoriedade em ciclo urbano, as primeiras medidas começaram por iniciativas dos próprios municípios. Cidades como São Paulo (SP), Brasília (DF), Curitiba (PR), Manaus (AM), Campinas (SP) e Santos (SP) foram algumas das primeiras a exigirem a obrigatoriedade do uso do cinto na cidade, entre 1994 e 1995.
A obrigatoriedade ganhou a abrangência nacional apenas a partir de 1º de janeiro de 1998, quando foi instituído o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Este foi aprovado meses antes, em 23 de setembro de 1997, pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Nele, o Artigo 65 destaca: “É obrigatório o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN”. Depois disso, o item passou a ser obrigatório até os dias de hoje. O passar dos anos trouxe mais evoluções no sentido de dispositivos de segurança. Algumas delas foi a de que os carros zero-quilômetro passassem a ter obrigatoriedade do sistema de fixação Isofix de cadeirinhas, bebê conforto e assentos de elevação.
Trazendo pontos de ancoragens para a fixação destes equipamentos nos bancos, o sistema Isofix ajuda a preservar a vida de crianças de até 10 anos, em diferentes níveis. Crianças de até um ano utilizam o bebê conforto. De um ano a quatro anos de idade, utiliza-se cadeirinha, enquanto de quatro a sete anos e meio se usa o assento de elevação. Nesse último caso, a criança já pode usar o cinto de segurança do veículo. É recomendado que esse equipamento seja utilizado até os 10 anos de idade ou até a criança ter 1,45 metro de altura. Alcançada esta altura, ela já pode utilizar o banco traseiro apenas com o cinto de segurança do veículo e o transporte no banco dianteiro é recomendado a crianças a partir de 10 anos, também com uso obrigatório do cinto de segurança.
Sistema de fixação Isofix nos bancos dos automóveis | Foto: Volkswagen / divulgação
Mas o que acontece se você deixar de utilizar o cinto nas crianças? Os pais ou responsáveis que não levarem as crianças nos seus respectivos equipamentos de segurança de acordo com a idade podem ser multados e ter o veículo apreendido até que a irregularidade seja corrigida. Há algumas exceções à regra, como transportes coletivos, escolares, veículos de aluguel, táxis e veículos com Peso Bruto Total (PBT) superior a 3,5 toneladas. Em veículos menores, as exceções ficam por conta daqueles que possuem apenas a primeira fila de bancos, onde a criança será transportada com os equipamentos de segurança, porém no banco dianteiro. O uso destes recursos é obrigatório desde 2008 por conta da Resolução Nº 277/2008, que determina a utilização dos equipamentos para transporte de crianças.
Houve uma alteração por meio da Resolução Nº 819 do Contran, de 17 de março de 2021, sobre a obrigatoriedade do assento de elevação para crianças menores de 1,45 metro de altura que já tenham completado sete anos e meio de idade. A obrigatoriedade desses equipamentos para o transporte de crianças de até 10 anos é responsável por reduzir em 71% o risco de morte em caso de colisão. De acordo com o Criança Segura, a principal causa de mortes de crianças de um a 14 anos são com acidentes de trânsito, de acordo com dados do Ministério da Saúde, ou seja, urge a necessidade de que os pequenos também estejam protegidos com seus respectivos equipamentos de contenção.
Brasil, apertem os cintos. Dados e perfis, aí vamos nós
É inegável que o cinto de segurança é um equipamento que reduz danos em acidentes. Todo mundo que fez a sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH) a partir de 1998, já com as normativas do CTB e previsto em seu Art. 65º, sabe disso. E quem a fez antes, claramente ouviu que as regras e a sua obrigatoriedade mudaram. Se antes era opcional, passou a ser obrigatório. E por mais que muitos até entendam que sua obrigatoriedade traz segurança, ainda não o utilizam. De acordo com a seção de dados abertos no portal da Polícia Rodoviária Federal, o Anuário, relativos ao ano de 2023 (último anuário disponível porque os dados de 2024 ainda estão em fase de compilação), por dia, são autuados 571 condutores pelo não uso do equipamento, seja por motorista ou passageiros.
INFOGRÁFICO I
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